.

..

quarta-feira, novembro 10, 2004

 

Que sera, sera. Whatever will be, will be

João era uma espécie de profeta. Os seus sonhos eram premonitórios, anunciavam a realidade do dia seguinte. Certa noite, João sonhou que era assaltado no caminho para o emprego. Tendo espreitado este futuro durante a noite, decidiu tomar todas as precauções durante o dia para evitar um desenlace que o conduzisse tão desagradavelmente à perda dos seus bens pessoais. Ao sair de casa tinha na mente uma questão: «Se conseguir evitar ser assaltado, provando que o futuro é exclusivamente fruto das nossas escolhas, não estarei a derrubar pela base conceitos como "profeta" e "previsão"?». Então teve de escolher entre declarar-se uma fraude como profeta ou aceitar a inevitabilidade de vir a ser vítima do assalto que previra durante o sono.
Decidindo que preferia a posse dos seus bens ao estatuto de vidente, traçou mentalmente os caminhos mais seguros até ao emprego, caminhos que eram também os mais demorados e incomuns. Á saída da sua rua, seguiu por uma estrada longa que percorria a periferia do bairro de modo que não atravessava nem urbanizações perigosas nem espaços públicos mal frequentados. Para além disso a ausência de prédios e outros obstáculos naquela estrada permitia-lhe detectar um indivíduo até à exaustão do seu campo de visão. Caso se achasse em perigo, teria tempo de se esconder algures ou de alterar a sua rota, evitando colisões com agentes potencialmente perigosos.
Apesar de todos estes cuidados, João foi assaltado. O assaltante aproximou-se por trás, pedalando uma bicicleta num ritmo tal que bastou o tempo entre dois controlos de retaguarda para se aproximar. Quando João o viu já ele estava a cerca de dois metros e decidiu não fugir. Não foi por orgulho que se decidiu a manter o passo, mas por duas razões bastante práticas, calculadas e inteligentes: fugir seria declarar abertamente de que carregava consigo algo que valeria a pena cobiçar e roubar, além de ser uma demonstração explícita de medo, o principal ajudante de quem comete o roubo. Quando a vítima tem medo, está nas mãos do outro para que este faça dela o que bem entender. O medo é os cordelinhos com os quais o assaltante controla a vítima como uma marioneta.
Então João manteve o passo e esperou, sem poder fazer muito mais, que tudo corresse pelo melhor. Estava já bastante impressionado pela exactidão do sonho e o modo como tudo o descrito o caçava tão implacavelmente e decidira, também por isso, não resistir. Percebera que o futuro aconteceria se estivesse destinado a acontecer. Face aos seus esforços para alterar os eventos que o esperam, o futuro dar-se-ia ao luxo de forçar uma ou outra pequena curva nos seus desenhos para colocar o inevitável algures no nosso percurso.
O assaltante não demorou menos que quarenta segundos nem mais que cinquenta. João sentiu frustrados todos os seus esforços e sacrifícios, o que lhe deixou uma segunda pergunta a flutuar na sua consciência: «Será que teria sido igualmente assaltado se tivesse feito o meu caminho normal, sem tomar qualquer precaução?». Porque na verdade fora a sua luta para evitar o encontro que o levou a estar naquele lugar naquele momento, permitindo o assalto e provando que os acontecimentos inevitáveis do futuro são literalmente inevitáveis.
Restava apenas uma questão: «Se não tivesse tomado precauções, seria assaltado num ponto de outro caminho ou, dadas as circunstâncias, nunca eu teria escolhido outro caminho se não este?».


Comentários:
queria elogiar mas vai ficar banal. mas fiquei orgulhosa =)
 
Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]





<< Página inicial

Arquivos

junho 2004   julho 2004   agosto 2004   setembro 2004   outubro 2004   novembro 2004   dezembro 2004   janeiro 2005   fevereiro 2005   março 2005   abril 2005   maio 2005   junho 2005   julho 2005   agosto 2005   setembro 2005   outubro 2005   novembro 2005   dezembro 2005   janeiro 2006   fevereiro 2006   março 2006   abril 2006   maio 2006   junho 2006   julho 2006   agosto 2006   setembro 2006   outubro 2006   novembro 2006   dezembro 2006   janeiro 2007   fevereiro 2007   agosto 2007   dezembro 2007   janeiro 2008   fevereiro 2008   março 2008   abril 2008   junho 2008   julho 2008   agosto 2008   janeiro 2009   janeiro 2012  

This page is powered by Blogger. Isn't yours?

Subscrever Mensagens [Atom]