(...) De tudo o que já escrevi, discuti ou relatei, a minha vida e a minha pessoa são definitivamente as coisas mais complicadas, já que o que temos dentro de nós é geralmente difícil de ver com total clareza. E porquê? A vida tem maneiras tanto irónicas como dolorosas de nos ensinar que aquilo que temos mais perto pode ser o que menos conhecemos.
A acção de cada um de nós na realidade, através do seu eu, é algo de muito directo: não há qualquer espécie de mediação no fenómeno de sermos causas neste mundo. E mesmo assim há uma incompreensão enorme em cada pessoa, em relação à sua própria pessoa. É esta incompreensão que para mim se afigura inexplicável, o porquê de só nos conseguirmos definir por aquilo que temos de mais exterior e que mais partilhamos com outros seres. "Chamo-me João, sou estudante, quero ser escritor e gosto muito de açorda". João é um nome que não me distingue, estudantes há muitos, não falta quem queira ser escritor e menos ainda quem goste de açorda. Portanto, nada disto me define, há, de certeza, quem além de mim reuna estas características. Ainda assim considero-me um indivíduo particular e inimitável, único, singular. Roubando a ideia de Milan Kundera, não se trata de cada pessoa ter várias características mas, já que há certamente mais pessoas que características normalmente nomeadas, dir-se-ia melhor que cada característica possui um grande número de indivíduos ? uma espécie de agrupamento ou categorização das pessoas. Nós é que realmente somos pertença delas e não o oposto. Pode-se dizer, então, que as coisas que nos distinguem (ocupação, gostos pessoais)não nos distinguem realmente? Que somos nós que as distinguimos ao pensarmos que elas nos distinguem uns dos outros?
No entanto, por mais que partilhemos estas características, por mais que elas nos façam semelhantes a outra pessoa, todos sabemos que dentro de cada um de nós existe algo irrepetido que nos distingue verdadeiramente de todos os outros. O que é? Não penso que alguém o saiba e responda tão prontamente como se lhe perguntassem o nome. Destacamos especialmente o que temos de mais superficial: o estilo de roupa que usamos, a música que ouvimos, as coisas de que gostamos, entre muitas mais. São coisas superficiais na medida em que qualquer pessoa as percebe antes de (ou mesmo sem) atingir o mais fundo de nós. Opondo-se a esse fundo, são características da nossa superfície: superficiais.
Como o mais profundo de nós é difícil de atingir e mais complicado ainda para se exprimir, revelamo-nos ao mundo com o mais periférico de nós. É assim que nos tentamos diferenciar de todos os outros seres humanos: inovando constantemente e o mais originalmente possível a nossa superficialidade. Alguns apercebem-se até que a mudança radical e constante é o mais complicado de se imitar. Mais tarde, alguns apercebem-se de que várias pessoas se aperceberam do mesmo e temos um retorno ao início. Como a normalidade é um factor a evitar a todo o custo, só aqueles que admitem que são normais é que podem provar que o não são.
Mas o objectivo disto que escrevo não é criticar. Para isso não faltam os meus companheiros de geração que acham em tudo o pouco obrigatório de cinismo, hipocrisia, ou mesmo a moda do consumismo do natal. Estou aqui, sentado, a comer torradas no café, para procurar aquilo que distingue cada ser humano de toda a sua espécie. E a primeira conclusão está já estabelecida: há que procurar mais fundo do que onde se situa tudo o que impomos aos olhos dos outros.
Olhando para trás, vejo pessoas que marcaram a história e se destacaram de toda a massa indiferenciada de seres humanos que vivem e morrem despercebidos. O que mostraram estas pessoas do seu interior para que se distinguissem tanto do resto da humanidade? São pessoas elevadas pelos seus ideais, pelas coisas pelas quais lutaram mostrando a inutilidade e ineficácia do dispensável superficial no que diz respeito a definir uma pessoa. Mas, ideais e crença, não serão como o gosto individual e a música que ouvimos? Algo que possuímos menos do que esse algo nos possui a nós? Afinal, para cada crença há um número farto de seguidores e não é essa crença que os distancia. Pelo contrário: é a crença que os aproxima.
São os artistas que convém sublinhar na escala daqueles que mais se aproximaram de revelar a sua pessoa na sua dimensão única. Isto porque a arte é sempre um processo de criação pessoa e subjectiva, joga com a interpretação do mundo aos olhos de cada um e traduz, por isso, aquilo que de mais pessoa a intransmissível temos: o modo como sentimos a realidade que nos rodeia. Enquanto o aperceber e o racionalizar categorizam o ser humano, é o sentir que faz de cada pessoa uma categoria só por si, um elemento que não corresponde nem se identifica com nenhuma das categorias alguma vez formadas. Afinal, o sentir nasce em nós antes da percepção, da definição racional, antes de podermos fazer qualquer coisa para evitar ou controlar. Imprevisível e incontrolável, é o sentir de cada coisa em nós que nos separa com a sua complexidade.
Enquanto dimensão humana indomesticável e inimaginavelmente profunda, o sentir não se compatibiliza com a expressão. De tão fundo que é o nosso sentir, torna-se difícil, por vezes, encaixá-lo nas medidas das palavras. A expressão simbólica do Homem revela-se pouco elástica e eficaz quando se trata de transmitir o que habita para lá do limiar do seu alcance. Assim, a frustração tornou-se um sentimento familiar de qualquer artista, de qualquer um que tente exprimir aquilo que em si é mais inexprimível.
Daí ser difícil definir o que cada um tem de singular com a mesma prontidão de quem só tem que dizer o nome: são coisas distantes demais para o braço débil da linguagem.
Todos sentem, algures pela vida, a sensação de que guardam algo para dizer ao mundo, Eu não sou qualquer excepção, e não são poucas as vezes em que sinto que apenas eu me compreendo, porque se tratam de coisas que não se conseguem dizer: sabem-se apenas pela experiência. Portanto atrevo-me a afirmar que o modo como o mundo se nos apresente é um derivado, de certo modo, da experiência. O que não implica que seja a experiência que nos faz diferentes do próximo. Enquanto a experiência pode ser partilhada, o impacto que esta tem em nós é absolutamente único.
Aqui penso se não se pode aplicar ao sentir o mesmo raciocínio que apliquei aos ideais e crenças: será que várias pessoas partilham o mesmo profundo modo como a sua própria vida lhes toca, formando assim categorias que não nos afirmam como indivíduos? Não creio. Mas não me preocupo. Se falamos do intransmissível, trata-se de algo indemonstrável, impossível de provar e testar. E permite-me a doçura de acreditar que sou único e inimitável.